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A Farmácia do Século 21

21 de julho de 2023
Fonte: Revista Veja Saúde – Julho 2023

Muito além das prateleiras de medicamentos e cosméticos, as drogarias estão se tornando novos polos de atenção à saúde, oferecendo exames, vacinas e até teleatendimento.

Texto LARISSA BEANI design SIAMO STUDIO ilustração TOONSTEB

Procurei me informar do que se tratava, enquanto depositava a valise e retirava a capa que escorria. Disse-me o sr. Valdo que dona Nina, logo após o jantar, sentara-se ao piano, sendo acometida de um mal súbito [...] Na ausência do doutor, a escolha recaíra sobre mim: não havia na cidade ninguém mais credenciado.” Quem narra esse trecho do romance Crônica da Casa Assassinada, publicado em 1959 pelo escritor mineiro Lúcio Cardoso, é o farmacêutico Aurélio dos Santos.

Apesar de fictícia, a cena retrata bem uma situ- ação que por muito tempo foi comum: a figura do profissional de farmácia como um agente ativo nos cuidados à saúde da população. Essa atuação, que no passado podia até ser confundida com a de um médico ou enfermeiro, foi sendo delimitada ao longo dos séculos por normas e regulamentos que determinaram as competências da área.

Uma lei importante para a prática no Brasil foi aprovada em 1973. Ela estabeleceu regras para a venda de medicamentos e ressaltou o caráter comercial das farmácias, que passaram a atuar primordialmente como um balcão de orientações e mercadorias.

É claro que isso não mudou totalmente o modus operandi pelo país, sobretudo nas cidades com menos acesso a postos de saúde e hospitais. Mas é fato que figuras como o Aurélio do livro, que eram convocadas quando alguém tinha um problema de baixa complexidade, passaram a ter um papel bem mais restrito.

Hoje é reconhecido que os farmacêuticos são os principais profissionais responsáveis por toda a cadeia produtiva de drogas e terapias farmacológicas. Isso significa que dominam o conheci- mento sobre a composição de princípios ativos, a fabricação dessas substâncias e como elas devem (ou não) reagir no corpo humano — ou de animais em geral. A atuação deles é etapa essencial à promoção da saúde, seja por participarem dos bastidores dos tratamentos, seja por garantirem o uso seguro e racional na interação com o consumidor.

A noção de que o atendimento nesses espaços deveria ser meramente comercial prevaleceu por quatro décadas, até que, em 2014, foi aprovada uma nova lei. Com ela, as farmácias têm recuperado o status de estabelecimento de saúde e retomado atividades mais assistenciais. “Esse foi o primeiro marco para a farmácia brasileira neste século”, avalia Cesar Bentim, consultor do setor de saúde há 30 anos. “A partir dessa lei, conseguimos explicar todas as transformações que estão ocorrendo no setor.”

De certa forma, a nova legislação permitiu que as farmácias resgatassem o espírito multifacetado do século 20, aplicando as tecnologias disponíveis no século 21. “A resposta para o que faremos na farmácia do futuro está, em certa medida, na farmácia do passado”, afirma Renato Camargo, vice-presidente de Clientes do grupo Pague Menos & Extrafarma.

“Trabalhamos para que ela seja um ponto de primeiro atendimento, de triagem e de acesso à saúde.” Em vigor há menos de dez anos, a mudança já resultou em transformações no varejo farmacêutico.

À frente desse movimento está a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que representa 30 grandes redes nacionais, como a RaiaDrogasil, as Drogarias Pacheco e São Paulo (DPSP), a Panvel Farmácias e a própria Pague Menos & Extrafarma.

“Nós estamos nos adequando a uma tendência que começou a surgir há cerca de 15 anos em países como Canadá, Estados Unidos, Inglaterra e Austrália”, explica Sergio Mena Barreto, CEO da Abrafarma desde o ano 2000. “É a passagem de um modelo farmacêutico transacional para relacional.” Ou seja, para o mercado, tornou-se insuficiente vender medicamentos e produtos de higiene pessoal.

De agora em diante, as farmácias também podem fornecer vacinação, serviços online e testes rápidos. Sua inclusão na lista de locais autoriza- dos a imunizar a população foi a primeira vitória do setor desde que esses estabelecimentos voltaram a ser reconhecidos como espaços de assistência.

A virada aconteceu em 2017, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu aval a uma resolução, fazendo a norma valer para todo o país. Em maio deste ano, outra resolução foi atualizada, ampliando sensivelmente a oferta de exames disponíveis. Apostando na praticidade e na proximidade das lojas às casas dos clientes — o famoso “Há uma farmácia a cada esquina” —, esses centros têm conseguido atrair um número cada vez maior de público em busca de imunização e testagem.

Segundo levantamento da healthtech Clinicarx, foram aplicadas 127 mil vacinas em farmácias ao longo de 2022 pelo país. A mais procurada foi a da gripe, com 94 mil doses, representando quase 74% do total.

Em menor proporção aparecem a pneumocócica 13-valente (4,73%), a meningocócica B (3,95%) e a rotavírus pentavalente (3,13%). Três anos depois da implementação desse serviço, nunca se falaria tanto em vacina. A Covid-19 chegou ao Brasil em março de 2020, provocando uma crise sem precedentes. E as farmácias, permanecendo de portas abertas, só viriam a reforçar seu papel de apoio à população.

“Durante a pandemia, nosso principal papel foi colaborar com o rastreamento de casos da doença por meio da testagem rápida, assim como manter o acesso ao tratamento de outras doenças”, afirma Daniel Cavaletti, gerente-executivo de Novos Negócios do grupo DPSP.

Ora, ainda que fosse de modo virtual, sem as drogarias ninguém conseguiria continuar comprando comprimidos para diabetes, pressão alta... Segundo a Abrafarma, entre 2020 e 2022, as redes associadas realizaram mais de 20 milhões de testes para diagnóstico de Covid-19 em quase 5 mil drogarias espalhadas por todo o Brasil.

Para conseguir atender às demandas da população no período, as empresas também tiveram que apostar em recursos digitais, permitindo que os clientes tivessem acesso aos produtos e tirassem dúvidas com farmacêuticos enquanto permaneciam protegidos em casa. No último ano, o e-commerce das principais redes somou 3,8 bilhões de reais com a venda de 105 milhões de produtos.

Fora o comércio eletrônico, o setor ainda se expandiu na internet com o advento da telefarmácia, que foi aprovada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) em julho de 2022. Assim como a telemedicina foi adotada para atender pacientes com maior conforto e segurança, clientes podem usar o serviço online para consultar profissionais de drogarias acerca de dosagem e disponibilidade de medicamentos, além de outros assuntos que exijam autoridade técnica.

A movimentação nas farmácias físicas, porém, segue intensa. No último ano, a Abrafarma registrou o número recorde de 1 bilhão de atendimentos entre suas credenciadas, que representam 44% da receita do segmento no país. É como se cada brasileiro fosse a uma drogaria cinco vezes ao ano.

Historicamente, a média era de quatro vezes. O aumento pode ter a ver também com outro motivo: o crescimento na prevalência de doenças crônicas, que exigem tratamento constante. Problemas cardiovasculares, diabetes, excesso de peso, entre outros, hoje são responsáveis por 74% dos adoecimentos e mortes em todo o planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — e a projeção não é de arrefecimento.

Estimativas da Federação Internacional de Diabetes (IDF) preveem que o Brasil, que conta com 16,8 milhões de pessoas com a doença, chegará a ter 21,5 milhões até a próxima década. Já a Federação Mundial de Obesidade (WOF) calcula que os casos devem saltar dos atuais 22% da população para 30% no mesmo período. Sem a devida orientação e a adesão ao tratamento, a ameaça é literalmente letal.

Pensando em contribuir para a triagem e o controle de problemas de saúde como esses, as farmácias passarão a oferecer testes rápidos para o acompanhamento de enfermidades crônicas e a identificação de doenças infecciosas. A disposição para a ampliação desse serviço é fruto da última resolução da Anvisa. O tema foi discutido em consultas públicas e revisado por especialistas ao longo de seis anos, e entra em vigor em 1º de agosto de 2023.

A intenção do setor farmacêutico é aproveitar, mais uma vez, a maior proximidade das farmácias com os clientes para cultivar uma rotina de prevenção, além de desafogar demandas mais simples de hospitais públicos e privados. No entanto, vale pontuar que os exames oferecidos por esses comércios não têm plenamente caráter diagnóstico. “Testes rápidos se prestam apenas à triagem. Portanto, muito possivelmente o paciente que opta por eles precisará confirmar os resultados com um exame laboratorial”, esclarece Wilson Shcolnik, presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed).

A entidade considera que não há dificuldade de acesso a exames do gênero no Brasil, tanto na rede pública quanto na particular. Além disso, a Abramed ressalta a importância do “cumprimento das normas de qualidade dos resultados por quaisquer serviços que venham a realizar testes rápidos”. Isso é decisivo para assegurar a confiabilidade do que é feito e vendido.

A iniciativa de inserir tais produtos no catálogo das farmácias se inspira no modelo americano. Por lá, as drugstores realmente exercem o papel de facilitar o acesso à saúde, já que não há sistema público universal e os serviços privados são demasiadamente caros. No Brasil, onde, apesar das muitas melhorias necessárias, o Sistema Único de Saúde (SUS), as instituições privadas e os convênios são mais acessíveis, será que a onda pega? Os primeiros dados sobre a tendência sugerem que há consumidores interessa- dos, mas a procura está longe de se equiparar com o boom dos kits para detecção de Covid-19.

Segundo análise da Clinicarx, em 2022, 50 mil testes rápidos não relacionados à infecção pelo coronavírus foram feitos no Brasil — um aumento de 36% em relação a 2021. Com 16 mil exames feitos, o teste rápido de gravidez (Beta-hCG) foi o mais pro- curado. Hoje em dia, a dona Nina, personagem que teve mal súbito no trecho do livro citado no início da reportagem, poderia descobrir, assim, que o motivo de seus desmaios era sua primeira gestação.

Cabe pontuar que a oferta de exames não é o único modelo de negócio e assistência possível. O farmacêutico e pesquisador Rondineli Mendes da Silva, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sublinha que há outros bons exemplos a inspirar os estabelecimentos nacionais.

“As farmácias na Inglaterra desenvolvem um trabalho muito interessante de combate ao tabagismo junto ao NHS, o sistema universal de saúde britânico”, conta. “Em outros países europeus, elas funcionam como unidades de saúde ligadas ao serviço público. Além de um trabalho de orientação, são responsáveis por encaminhar pacientes para clínicas e hospitais”, descreve Silva.

Com mais de 90 mil farmácias nas cinco regiões do país, é provável que não exista uma fórmula única que dê conta de todas as necessidades da comunidade. No entanto, persiste a ideia geral de que, quanto mais acesso a serviços e informações o brasileiro tiver, melhor.

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