A história do casal que fazia remédios na garagem hoje é um dos maiores produtores de genéricos
28 de abril de 2023Prati-Donaduzzi produz 13 bilhões de doses anuais de medicamentos e fatura mais de R$ 1 bilhão por ano.
Por Monica Gugliano — Para o Valor, de São Paulo
“Eu falo de maneira circular. Começo lá numa ponta e vou indo até chegar na outra ponta, que se junta com a outra. Às vezes esqueço onde estou”, diz o empresário gaúcho Luiz Donaduzzi, 68 anos, em meio a uma sonora gargalhada e sob o olhar compreensivo e bem-humorado da mulher, a também gaúcha Carmen, 66 anos.
De fato, em meia hora, Luiz é capaz de falar de 50 projetos diferentes com o mesmo entusiasmo. Se você tentar interrompê-lo, ele lhe pedirá, suavemente: “Calma. Tenha calma que já chegamos lá”. Nesse método circular de diálogo, entretanto, o mais provável é que você não chegue ao que quer saber.
Ou chegue duas horas depois de o assunto ter começado. Mas não se preocupe. Carmen Donaduzzi, sim, terá calma e lhe contará - com a ajuda de Luiz, é claro - essa história de empreendedorismo de dois farmacêuticos que, sem um centavo no bolso, em 1993, conseguiram construir a Prati-Donaduzzi, farmacêutica que produz hoje 13 bilhões de doses anuais de medicamentos genéricos e faturou R$ 1,29 bilhão em 2021 (o mais recente balanço auditado).
Dois farmacêuticos que hoje dedicam boa parte de suas atenções a outro projeto, o Biopark, um parque tecnológico com mais de 5 milhões de m2 instalado em Toledo, no Paraná, cidade onde a Prati-Donaduzzi está sediada.
Luiz e Carmem se conheceram na adolescência - ele nasceu em Jaguari, ela em Tucanduva, duas cidades do oeste do Rio Grande do Sul. “Eu não sei o que tinha esse cara. Era grande, magro e desengonçado. Mas casamos. Um tinha 20 e o outro 21 anos”, brinca Carmen. Enquanto Luiz responde dando gargalhadas: “Mentira, ela tinha 12 anos e já estirava a asa para mim”.
Formados na Universidade Estadual de Maringá, eles resolveram montar uma pequena farmácia no município de Querência do Norte, noroeste do Paraná. Mas contam que logo perceberam que “não era a praia deles” e fizeram um “esforço draconiano” para continuar estudando.
Em 1983, Luiz conseguiu viajar para a França para seguir nos estudos e, um ano depois, Carmem se juntou a ele depois de conseguir uma bolsa de estudos na Universidade de Nancy, na região da Lorena na França. Ficaram seis anos e voltaram. Luiz, novamente, voltou antes e se estabeleceu no Recife.
“Eu não tinha um centavo e, como ela ainda estava fora e tinha a bolsa, me mandava dinheiro para comer”, conta Luiz. Nos primeiros meses, o farmacêutico diz que não se adaptou muito bem ao emprego que arrumou, mas que percebeu que havia um potencial muito grande na região para fazer qualquer coisa. “Então, eu comecei a fazer”, diz. Carmen completa:
“Luiz se esqueceu de contar que quando ele chegou ao Brasil veio a São Paulo procurar emprego. Mas encontrou esse emprego em Pernambuco de diretor técnico. Não era um cargo almejado, mas era um emprego. Ele conseguiu ficar um ano ali. Depois saiu porque ele é muito briguento, exigente. Quer que as coisas aconteçam já.”
Sabe quando você começa uma casa nova (...)? Assim se assemelha o início de uma indústria farmacêutica, do jeito que nós começamos
Luiz ficou um ano sozinho no Recife, enquanto Carmen permaneceu na França para terminar o doutorado. Quando ela voltou ao Brasil, a primeira ideia que tiveram foi vender medicamentos em uma nova farmácia. Mas aí pensaram se, por serem ambos farmacêuticos, não seria melhor produzir alguma coisa. E, nos cálculos que fizeram, era melhor, sim. Ainda que tudo, como eles contam, fosse muito simples e a produção fosse feita na mesa da cozinha.
Os equipamentos, descreve Carmen, também eram muito simples. “Porque a gente não tinha dinheiro nenhum. Sempre falo que a gente começou nossa empresa com US$ 50 na garagem - mas a gente não tinha garagem -, então foi na mesa da cozinha”, conta ela, rindo. A rotina de produção também era muito simples.
Eles recebiam o pedido pela manhã, à tarde compravam a matéria-prima e durante a noite faziam os produtos. No dia seguinte, ainda pela manhã, entregavam os produtos e recebiam o pagamento. “Se recebíamos certinho, a gente tinha dinheiro para comprar um pouquinho de comida e mais material. A gente começou do zero, não tínhamos nada. Hoje é uma situação que seria impensável”, reflete ela.
Os Donaduzzi escolheram o Dhomus, um restaurante de comida mediterrânea, para este “À Mesa com o Valor”. Não optaram pelo local porque o conheciam ou gostavam dele, mas porque ficava próximo de outros compromissos que eles teriam depois.
O lugar, no Itaim, faz o estilo moderno de outros estabelecimentos semelhantes da região, frequentado por executivos da Faria Lima e adjacências. A comida é correta. Mas o serviço deixa a desejar. Escolhemos um camarão grelhado de entrada que, segundo o garçom, era servido com quatro unidades. Só apareceram três e ele teve que providenciar outro camarão, que apareceu 15 minutos depois dos outros.
O casal comeu um nhoque parigini e a assessora e a repórter preferiram os pratos do dia com peixe e salada. Para beber, duas taças de um Chardonay, água mineral e Coca Zero. Nosso almoço aconteceu num desses inícios de tarde calorentos, abafados, que prenunciam uma tempestade ao fim do dia. Como o restaurante não tem ar condicionado do lado de dentro, optamos por uma mesa fora. O clima ficou ótimo porque correu uma suave brisa durante toda a refeição.
Mas a conversa foi quase impraticável. Na mesa ao lado, um grupo com cerca de 20 pessoas de diversas nacionalidades - falando inglês, francês, italiano e espanhol - gritou sem parar durante todo o almoço e os garçons estavam atrapalhados com tanta gente.
“É muito ruim quando servem primeiro o prato dos cavalheiros e depois o das damas. Ou a gente é mal-educado e começa a comer antes ou espera as senhoras e come o prato frio”, comenta Luiz, chamando o garçom e indagando: “Os pratinhos das senhoras estão vindo?”.
As pessoas precisam colocar dinheiro no bolso, e é isso que queremos fazer com os profissionais que formarmos (...) em universidade de excelência
A comida finalmente chega e Luiz começa a contar como foi parar em Toledo. Era o começo da década de 1990 e, passado o baque do Plano Collor, o governo paranaense passou a oferecer incentivos para indústrias que quisessem se estabelecer na região. Eles estavam com saudades da família, já tinham os dois filhos (Vitor e Sara) e acharam que teriam uma chance de crescer ali.
Eles conseguiram um financiamento de US$ 50 mil, alugaram um galpão, contrataram 25 pessoas, chamaram um irmão e um cunhado (Celso Prati, daí o nome da empresa) para ajudá-los, arrumaram uma Kombi e começaram a produzir. Fabricavam mercúrio, água oxigenada e outros produtos de fácil confecção.
“Levamos, seis, sete anos para começar a produzir comprimidos”, conta ela, prosseguindo: “Sabe quando você começa uma casa nova e precisa de todas as coisas dentro da casa? Assim se assemelha o início de uma indústria farmacêutica, do jeito que nós começamos naquela época.
É claro que hoje não seria mais possível, nem a legislação permitiria”. Segundo Carmem, a receita era mais ou menos simples. “Todo o dinheiro que a gente conseguia coletar, a gente ia pagando.
Eu fui muitas vezes com meu cunhado ao banco para falar ao gerente: olha, a gente sabe que a prestação do financiamento está vencendo hoje. Mas nós não temos dinheiro para pagar. Mas nós vamos pagar. Nós tínhamos essa credibilidade”, diz. Até que a situação apertou tanto que Carmem se dispôs a dar aulas na universidade. “Fui meio a contragosto.
Mas esse dinheiro que eu levava para casa servia para pagar os funcionários. Porque isso é uma coisa sagrada, as pessoas trabalham, elas precisam receber. E, assim, fomos crescendo.”
É dessa época também outra das boas histórias que ela conta. “Eu ia duas vezes por semana a São Paulo, comprava insumos, levava durante a noite para o Paraná de ônibus. De repente conseguimos comprar um caminhãozinho, e isso para nós foi uma glória”, diz.
Melhor que isso, prossegue, foi quando conseguiram comprar uma linha telefônica, na época em que elas eram raríssimas e custavam muito. “Aí comprávamos em São Paulo pelo telefone! E o caminhão ia buscar, imagina! As coisas foram se ajeitando de tal forma que nós fizemos um puxadinho e fomos morar no fundo do laboratório no galpão para ficarmos perto das crianças. Foi uma alegria.”
Enquanto Luiz tocava a empresa, Carmem era quem se especializava. Foi inúmeras vezes à China e à Índia (grandes centros da indústria farmacêutica no mundo), levava alguns funcionários, fazia cursos de “drageamento”, novas tecnologias e, assim, a companhia ia crescendo. Pergunto-lhe se alguma vez ela imaginou que a PratiDonaduzzi teria este tamanho.
“Nunca. Acho até que ainda não percebemos”, responde ela. “Eu percebi há 20 anos que a gente faria uma empresa grande... Eu olho 20 anos pra frente e eu penso: quero chegar lá. Carmem é do dia a dia. Eu já sou pra frente, mais estratégico. Hoje eu quero fazer uma universidade de excelência.
A Carmem é muito prática, é ela quem coloca o boi no freezer”, diz Luiz. Ela diz que segue uma receita própria: ser honesta, baixar a cabeça e trabalhar. “E quando a dificuldade vem, você trabalha ainda mais.
Fizemos isso sempre. Luiz teve um linfoma, e isso aconteceu em um período em que a gente era altamente dependente dos bancos. Tivemos que seguir em frente.”
Em 1999, quando o então ministro da Saúde José Serra propôs a lei dos genéricos sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, os Donaduzzi acharam que se abria ali uma porta.
“Entramos de cabeça”, diz Carmem, e Luiz completa: “A Prati era a mais nova e menor. Hoje, 25 anos depois, somos o maior produtor de genéricos do Brasil e estamos inaugurando uma nova planta, estamos próximos de nos tornarmos o maior produtor de genéricos da América Latina”. Segundo o ranking brasileiro da IQVIA, uma provedora de dados do setor de saúde, a PratiDonaduzzi é a oitava maior farmacêutica em unidades e receita.
A companhia está construindo uma nova fábrica para aumentar a produção, que hoje está em 45 milhões de doses/dia (13 bilhões/ano). “Tratamos de mais de 25 milhões de pessoas por dia.” A companhia entrou agora na produção do canabidiol.
Está importando a matéria prima e, como não são muitos os fornecedores que têm o produto puro no mundo, passaram a fazer a síntese química que não depende da planta. “Estamos trabalhando em parceria com um grupo de médicos da Universidade de Ribeirão Preto”, diz Carmem, explicando que, atualmente, poucos laboratórios no mundo estão fazendo estudos clínicos com canabidiol - no Brasil, só eles.
Um desses estudos, descreve ela, é destinado por indicação médica a crianças com epilepsia que chegavam a ter 800 crises ao mês e que agora estão vivendo normalmente. Mas Carmem admite que os medicamentos à base de canabidiol ainda estão longe do alcance da maioria das pessoas que teriam prescrição para usá-los. “Existe toda uma luta das famílias para que este produto chegue aos órgãos do governo e seja distribuído, porque hoje em dia é muito caro para quem tem que comprar.
E, se a criança se beneficia com o tratamento, ou os pais compram ou entram na Justiça”, explica. O canabidiol, porém, é apenas um dos itens que estão mobilizando os Donaduzzi atualmente. E aí, quando, você menos espera, Luiz muda completamente de assunto e passa a falar da produção de queijos finos que começou em sua fazenda no Mato Grosso.
Só que a mudança de assunto é tão rápida que Carmem intervém, brincando: “Calma, vamos terminar o assunto dos medicamentos...”. Mas os medicamentos, para Luiz, já ficaram para trás. Agora já estamos falando da fazenda, onde ele iria descansar, mas começou a produção de queijos e, também, do desejo de comprar outra fazenda no Pará.
“Mas Carmem não deixa, diz que já chega de fazendas e que o estado está perigoso”, conta Luiz. Se o tema fazenda esgotou, Luiz não se acanha, assunto é que não vai faltar nesta conversa que já dura duas horas e ainda vamos escolher as sobremesas.
“Não podemos deixar de falar do Biopark, onde são produzidos os queijos artesanalmente”, afirma. E lá vamos nós para o Biopark, um ambicioso projeto com investimentos privados no total de R$ 255 milhões, que o casal começou em 2016, instalado em uma área com mais de 5 milhões de m2 para criar um parque tecnológico que possa atrair estudantes, empresas e investimentos.
A estimativa dos Donaduzzi é que até 2045 ali sejam gerados 30 mil novos empregos. Atualmente já estão instaladas ali 167 empresas, e até o fim deste anos os Donaduzzi acreditam que 13 galpões estarão construídos, interligando empresas e indústrias com o desenvolvimento de pesquisas, estudos e formação de profissionais.
“Prevemos que em 2024 inauguraremos uma hospital da Unimed de alta complexidade aqui dentro”, diz Luiz, que, apesar do entusiasmo com o Biopark, confessa que “já está levando sua cadeira para outro lugar”. E qual seria esse lugar? A universidade que já está funcionando na área do Biopark.
“A gente ia fazer outra coisa... Mas, na semana passada, decidi que quero continuar fazendo uma universidade de excelência com ensino disruptivo”, diz. Em sua opinião, nos últimos anos a educação se degradou tanto que 55% dos estudantes cursaram uma faculdade à toa e esse esforço não agregou nem agregará nada ao salário desses profissionais.
“As pessoas precisam colocar dinheiro no bolso, e é isso que nós queremos fazer com os profissionais que formarmos. Prepará-los para este mercado de trabalho em uma universidade de excelência de referência.” A educação, segundo Luiz, da maneira que está, está falida, não funciona mais. “Ninguém consegue ficar mais quatro anos na universidade sem aprender nada.
Os cursos de elite têm muita disputa, biologia não tem mais candidatos.” Em tantos anos, porém, só há um tema que atormenta Luiz Donaduzzi: a morte. A preocupação não surgiu à toa. O ano era 2002, e ele descobriu um nódulo no abdômen. Procurou os melhores médicos, tratou-se. Mas chamou os filhos e os mais próximos, anunciou que em 90 dias estaria morrendo e que a empresa teria que se virar sem ele. Já se passaram 20 anos desde que ele fez o comunicado fúnebre.
Preparou seu sucessor, Eder Fernando Maffissoni, e, diz, hoje se sente tranquilo quanto ao futuro da empresa e da divisão de tudo que foi construído pela família. Mas não se sente tranquilo, e a morte acaba permeando todo e qualquer assunto que ele aborda, principalmente em relação à empresa, que considera “invendável”.
Acredita que, por causa do estresse, ele teve três arritmias e ficou 25 dias em coma. Essa experiência de “quase morte” teria mexido muito com suas emoções. O grupo barulhento da mesa ao lado está se despedindo, e nós achamos que também está na hora de ir. Luiz pede um sorvete de sobremesa, nós, mais comedidas, ficamos com um “carpaccio” de abacaxi.
A conversa segue e Luiz conta que vem tentando diminuir essa “obsessão”. “Fiz uma mudança mental depois de quase morrer. Agora só faço o que quero”, diz. Os Donaduzzi frequentemente são chamados para palestras. Aceitam cada vez menos convites. Preferem ficar na fazenda.
Carmen conta que quase sempre, em todos esses eventos, a primeira pergunta que lhes fazem é se eles começariam tudo de novo. Ela prontamente diz que não. Ele logo emenda e observa que se ambos tivessem novamente 25 anos, é claro que fariam, sim.
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