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A regulamentação da AIR está engessando as escolhas regulatórias?

29 de março de 2023
Fonte: Portal JOTA

Sob o pretexto de garantir conformidade, corre-se o risco de regulamentação do instrumento engessar a máquina pública

Estamos prestes a completar dois anos de obrigatoriedade da análise de impacto regulatório (AIR) no Brasil. O Decreto 10.411/2020, que regulamentou a AIR prevista na  Lei Geral das Agências  e na  Lei de Liberdade Econômica , tornou-se o instrumento obrigatório para o Ministério da Economia, Inmetro e as 11 agências reguladoras federais a partir de 15 de abril de 2021. Para os demais reguladores federais, a AIR tornou-se obrigatória a partir de 14 de outubro do mesmo ano.

Para a maioria das agências reguladoras federais, no entanto, a obrigatoriedade do uso do AIR não é uma novidade. Para 6 das 11 agências reguladoras federais – Anvisa, Anac, Aneel, Anatel, Ancine e ANS – a AIR figura como instrumento obrigatório para subsidiar a produção de normas há uma década. O instrumento tornou-se também obrigatório em 2016 para a ANTT, e em 2018 para ANA e ANM. Apenas para ANP e Antaq o instrumento não era obrigatório no momento da edição do Decreto 10.411/2020. [1]

Ainda é cedo para produzirmos um diagnóstico preciso sobre os reais efeitos da regulamentação da AIR nos processos regulatórios brasileiros. A tendência é a de crescimento no número de estudos acadêmicos que buscam avaliar a qualidade dos AIRs produzidos pelos reguladores. [2]

Embora ainda necessitemos de estudos conclusivos, vários deles têm sugerido que os diplomas legais que completaram a AIR obrigatória, e que versam de forma minudente sobre a sua procedimentalização, não foram contribuídos para a realização das finalidades acima mencionadas. [3] 

O baixo número de AIRs até hoje realizado, em conjunto com  o alto índice de dispensas  do seu uso, somados ao cumprimento  pro forma  dos requisitos e etapas da AIR, nos fazem questionar o papel da regulamentação da AIR na garantia da obrigação do instrumento. Sob o pretexto de garantir a conformidade com os requisitos e etapas da AIR, corre-se o risco da regulamentação do instrumento engessar a máquina pública.

Embora as agências reguladoras já adotem a AIR para instruir seus processos normativos, seria declarado que elas não foram impactadas pelo Decreto 10.411/20. Muito além de estabelecer prazo para a sua implementação, esse decreto discriminou, de forma minuciosa, hipóteses de dispensa e de inaplicabilidade do AIR.

Determinou, ainda, as questões que devem constar do relatório de AIR, como, por exemplo, a exposição dos possíveis impactos das alternativas identificadas, incluindo análise sobre os custos regulatórios. O decreto anterior, de forma taxativa, e não exemplificativa, como metodologias aceitáveis ​​para a avaliação do impacto econômico das alternativas regulatórias.

O percentual de normas das agências precedidas de AIR parece estar sendo observado desde que o Decreto 10.411/20 foi editado. Tome-se o exemplo da Anvisa, agência reguladora que, ao menos até a edição do referido decreto, mais realizara estudos de AIR no Brasil. [4]  Entre 2012, ano em que a AIR se tornou obrigatória para a Anvisa, e 2019, ano da edição da Lei Geral das Agências, os percentuais de normas da agência precedidas de AIR variaram entre o mínimo de 33,3% e o máximo de 45,2%.

O percentual de AIRs caiu para 20,1% em 2020, 17,5%, em 2021, e 6,2%, em 2022 [5] . No ano de 2021, todas as AIRs publicadas pela Anvisa foram realizadas anteriormente ao início de vigência do decreto, no mês de abril. Aliás, entre abril e dezembro de 2021, o número total de AIRs realizados pelas agências reguladoras federais foi consideravelmente baixo – um total de 21 AIRs realizados, conforme levantamento neste estudo  aqui .

Esse número contrasta com os 105 AIRs realizados entre janeiro a abril de 2021, meses anteriores ao início de vigência do decreto, conforme levantamento em  estudo  já citado. Isso contribuiu para que o ano de 2021 fosse aquele em que menos se produziu AIRs na série histórica entre 2016 (ano em que a AIR tornara-se obrigatória para a maioria das autoridades) e 2021.

O baixo percentual de AIRs realizado é acompanhado do alto índice de dispensas/inaplicabilidades do uso do instrumento. Em  estudo anterior , Lucas Thevenard e eu analisamos a série histórica do percentual de casos de dispensa de AIR da Anvisa desde que esses dados passaram a ser divulgados pela agência, em 2011. Um de nossos principais achados foi o de que entre 2011 e 2020 a agência garantiam normas com dispensa de AIR em 56,7% dos casos, dos quais 86,2% utilizavam a urgência como principal justificativa.

A OCDE recentemente fez um  alerta  para a tendência de seus países membros de fazerem uso da dispensa de AIR em situações de emergência. Para uma organização, esta seria uma estratégia equivocada, já que decisões apressadas, tomadas em contextos de crise e sem a devida avaliação de riscos, podem acabar colocando em risco vidas, sob o pretexto de defendê-las.

Em pesquisa em andamento, identificamos que os casos de dispensa por urgência na Anvisa diminuíram para 47,09% nos anos de 2021 e 2022, após o início da vigência do Decreto 10.411/20. A queda no número de casos de dispensa de urgência não foi concomitante, no entanto, por um crescimento no número de AIRs realizados. A agência tem se amparado, portanto, nas novas hipóteses legais de dispensa e de inaplicabilidade trazidas pelo Decreto 10.411/20 para justificar a não realização de AIRs.

Os altos índices de dispensa e/ou inaplicabilidade de AIR não são um problema em si, especialmente se estivessem relacionados a casos em que a AIR se revelasse contraproducente – caso, por exemplo, da produção normativa de baixo impacto.

Os ainda altos percentuais de dispensa por urgência, no entanto, podem eventualmente encobrir razões ocultas para não se realizar AIR, como, por exemplo, uma certa hesitação do regulador em realizar estudos de impacto mais pragmáticos, que levem em consideração fatores relevantes para a tomada de decisão – como estimativas subjetivas, experiência prévia ou  intuição , por exemplo – porém não aceitável ou não valorizado por quem defende um modelo  racional-instrumental  para o uso de AIR.

O excesso de requisitos procedimentais aplicados à produção normativa regulatória nos Estados Unidos, incluindo a exigência de metodologias quantitativas mais robustas, como a análise de custo-benefício, tem efeitos produzidos gerados, como o da “ossificação . Segundo McGarity, autor da tese, o processo normativo nesse país tornou-se engessado em função de uma série de exigências analíticas que foram sendo paulatinamente impostas individual ou conjuntamente por atores dos três poderes e da própria exigência americana. No Brasil, Congresso e presidente da República duelam-se para ditar as regras do processo regulatório [6] , razão pela qual o exemplo americano deve nos servir de alerta.

Por todo o exposto, retomo exemplo apresentado no  artigo  anterior, em que apresento a situação de um regulador que necessita aprovar uma resolução com celeridade:

“Nesse caso, o que parece ser a melhor solução? Que a agência seja dispensada de realizar o AIR, tal como previsões o  Decreto 10.411/20 , com ônus argumentativo fraco, bastando que ela alegue “dispensa por urgência”, ou que ela justifique conquista suas escolhas regulatórias em face de suas motivadas, construídas ao longo dos anos em que atua na seara regulatória?

No primeiro caso, está-se adotando a solução legal — dispensa de AIR por urgência — que é totalmente consistente com um modelo puramente racional-instrumental. No segundo caso, aceita-se um modelo menos racional, que dispensa a agência reguladora da realização da AIR, porém que não a isenta do ônus de explicitar claramente as razões pelas quais pretende adotar determinada norma”.

Para alguns, esse pode ser um falso problema, já que nos casos de dispensa por urgência o regulador restará, por força do artigo 12 do Decreto 10.411/20, obrigado a realizar Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) em um período de até três anos .

Em estudo ainda não publicado, no entanto, identificamos que a Anvisa já se “autodispensou” 19 vezes de ARRs futuros sob a justificativa de que se tratavam de atos normativos instituídos e temporários, adotados em resposta à pandemia. A “dispensa da dispensa” não parece ter sido vislumbrada pelo legislador, mas é um efeito indireto da tentativa de se amarrar as mãos do regulador por meio da regulação da AIR no Brasil.

[1]  O levantamento dos atos normativos que eram obrigatórios a AIR entre as agências reguladoras federais consta deste trabalho  aqui .

[2]  Exemplos de bons estudos recentes realizados com este propósito podem ser acessados  ​​aqui  e  aqui .

[3]  Esta é uma das tentativas deste interessante  trabalho .

[4]  Cf., nesse sentido, o  levantamento  realizado pelo UERJ Reg das AIRs realizado pelas agências reguladoras federais em período anterior à vigência do Decreto n. 10.411/20.

[5]  A metodologia de coleta dos dados referentes aos anos de 2012 a 2020 é descrita  aqui . A coleta dos dados referentes aos anos 2021 e 2022 foi feita pelo bolsista de iniciação científica João Pedro Paravidino, a quem registro meu agradecimento.

[6]  Abordei esse tema  aqui aqui aqui  e especialmente em SALINAS, N; CERQUERA, L. Análise de impacto regulatório na Lei Geral das Agências e na Lei de Liberdade Econômica: fundamentos e estresse. Interesse Público , v. 22, p. 217-231, 2020.

NATASHA SALINAS – Professora do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio. Doutora e Mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.

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