Com medo da armadilha da renda média, China tenta novo modelo econômico para continuar crescendo
29 de junho de 2021No centenário do Partido Comunista, aumento da desigualdade e redução do ritmo de crescimento são novas preocupações, que levam à proposta de fortalecimento maior do mercado interno
XANGAI — Para alguns, socialismo de mercado. Para outros, capitalismo de Estado. Em geral, um modelo econômico que desafia classificações. Mais fácil é constatar os resultados obtidos pela China desde a abertura promovida a partir de 1979. Um retrato instantâneo sempre usado pelo governo é o novo distrito financeiro de Xangai. De uma área basicamente rural, Pudong transformou-se em um cenário futurista, com alguns dos prédios mais altos do mundo.
A imagem de modernidade de suas cidades, com altas doses de tecnologia integradas ao cotidiano, é motivo de orgulho num país que até o fim dos anos 1970 estava entre os mais pobres do mundo, com renda per capita equivalente a um décimo da brasileira na época. Para os chineses, a comparação que mais conta é com a geração anterior, em que desde 1979 a atual sempre leva a melhor em termos de renda e condições de vida.
A confiança no futuro é evidenciada pelo aumento do número de jovens que estudam no exterior e voltam para o país. Um deles, que pede para não ser identificado, conta que constatou isso ao retornar a Pequim depois de anos na Europa e ver que a oferta de chineses havia se multiplicado no Tinder, um aplicativo de encontros que geralmente só é conhecido por quem tem experiência internacional.
No centenário do Partido Comunista Chinês (PCC), celebrado nesta quinta-feira, o progresso econômico é o mais ressaltado pelo governo para justificar sua legitimidade e garantir a estabilidade social, num sistema autoritário sem brechas para o dissenso.
Quando criança, na zona rural de Xangai, o sonho de Zhang Yue era ter uma bicicleta. Hoje com 42 anos, o funcionário de uma estatal faz parte dos 400 milhões de chineses que formam a maior classe média do mundo. Os sonhos de seu filho de 13 anos são bem menos modestos: criar o próprio negócio de jogos eletrônicos e ter uma Ferrari. Zhang nasceu meses após a reunião do Comitê Central do PCC, em 1978, que deu a largada para as reformas que mudaram o país e a economia mundial.
— Na comunidade onde cresci, só um vizinho tinha TV. Toda noite, o bairro inteiro se juntava diante da tela na casa dele. Hoje as ambições têm outro tamanho — diz Zhang.
Piketty vetado
Ao liberar as forças de mercado na economia, o partido, sob a liderança de Deng Xiaoping, abriu caminho para a maior expansão do PIB na História, com média anual de 10% nas três décadas seguintes. O sucesso econômico se deve a um sistema de governança que planeja com antecedência os projetos necessários ao país e mantém um equilíbrio entre as forças de mercado e o Estado, repete o discurso oficial.
Apesar de o Estado ainda controlar totalmente setores considerados estratégicos, como o bancário, para muitos economistas, a chave do milagre chinês está no setor privado, cuja contribuição costuma ser descrita na fórmula 60/70/80/90: ele contribui com 60% do PIB, 70% da inovação, 80% da mão de obra urbana e 90% dos novos empregos.
— O crescimento tão rápido da China não se deu graças ao governo, mas apesar dele. Há uma notável energia empreendedora no país, que é o motor do crescimento. Os líderes em Pequim não são estúpidos, eles sabem disso — afirma o economista-chefe de pesquisa do Banco de Desenvolvimento da Ásia (BDA), Donghyun Park.
“Deixem que alguns fiquem ricos antes”, foi a famosa recomendação de Deng na época das reformas. Mas o salto econômico deixou muitos para trás. Embora a China tenha anunciado no ano passado que cumpriu a missão de erradicar a pobreza extrema, o país é um dos mais desiguais do mundo, um motivo de preocupação para os líderes do PCC. Uma pesquisa feita por cinco especialistas, entre eles o francês Thomas Piketty, famoso pelos estudos sobre desigualdade, concluiu que os 10% mais ricos na China detêm 70% da renda privada no país, contra 40% em 1995.
Quando lançou seu aclamado livro “O capital no século XXI”, Piketty foi traduzido na China e até mencionado pelo presidente Xi Jinping num discurso de 2015. Mas seu livro seguinte, “Capital e ideologia”, continua sem publicação no país, devido à recusa do autor em se curvar à censura oficial e cortar os trechos sobre as desigualdades do “socialismo com características chinesas”.
Inaugurada no início de junho em Xangai, ao lado do local onde o PCC foi fundado, a exibição sobre o centenário recebe em média 10 mil visitantes por dia. Os organizadores da exposição não entram em grandes explicações teóricas sobre o que ainda é socialista na China hoje em dia.
— O socialismo é o que nos trouxe até aqui, o que uniu os chineses e os manterá no caminho da felicidade — diz Zhang Yuhan, que chefiou a pesquisa do memorial.
‘Dupla circulação’
A aparente superficialidade do discurso não significa que o PCC deixou de lado a capacidade de adaptação. A desaceleração do PIB nos últimos anos levou o governo a estimular uma mudança no eixo da economia, para que o consumo interno substitua as exportações e os investimentos como propulsor do crescimento. Repaginada sob o comando de Xi Jinping, a estratégia ganhou o nome de “dupla circulação”, em que o consumo interno e as vendas ao exterior se complementam. O fortalecimento interno também é movido pela busca de autossuficiência tecnológica, como forma de proteção diante de um ambiente internacional mais hostil.
Segundo Xu Hongcai, vice-diretor de Política Econômica da Associação de Ciências Políticas chinesas, os ataques dos EUA levaram o governo a tentar reduzir a dependência de mercados externos, não apenas em tecnologia, mas também em produtos agrícolas.
— A autossuficiência está no sangue do povo chinês. É um requisito muito importante para um país com 1,4 bilhão de pessoas. Se dependermos só de mercados externos, não nos sentiremos seguros.
Depois de anos de crescimento econômico acelerado, uma das maiores preocupações é escapar da “armadilha da renda média”, em que o potencial de expansão do país é esgotado antes que ele atinja o nível de produtividade e inovação necessário para se tornar uma economia desenvolvida. Apenas 12 entre 101 países emergentes desde 1960 conseguiram escapar da armadilha, e todos se tornaram democracias no processo, afirmou o sinólogo americano David Shambaugh em seu livro “Futuro da China”, de 2016. Hoje, ele continua achando que sem reformas a China entrará em declínio.
— Minha hipótese era de que a continuação do crescimento econômico da China, sua capacidade de inovar e construir produtos com valor agregado, iriam requerer uma liberalização do sistema político, não necessariamente democratização plena. Sim, o regime de Xi Jinping parece muito confiante em seu “modelo de governança”, mas o crescimento econômico robusto está decaindo e tende a continuar nesse viés. Eu continuo a acreditar que a China não atingirá o seu pleno potencial sem uma substancial liberalização do sistema político.
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