LGPD em visão pragmática: levando as consequências a sério
23 de maio de 2023Não há muito espaço para dúvidas de que a Lei Geral de Proteção de Dados envolve regulação econômica.
Muito se tem debatido em razão de recentes decisões do STJ e do TJSP acerca da responsabilidade civil das empresas no âmbito da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) em casos de incidentes de segurança (ou mais corriqueiramente “vazamento de dados”).
Não há muito espaço para dúvidas de que a LGPD envolve regulação econômica – seja porque a disciplina de proteção de dados tem como fundamentos, entre outros, o desenvolvimento econômico e tecnológico, a inovação, a livre iniciativa e a livre concorrência, seja em função das inúmeras vezes em que menciona em seu texto a palavra “regulação”, promovendo intervenção no mercado a partir de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a qual atua com base em uma “agenda regulatória” e, também, tem competência para aplicar sanções.
Com isso, esse microssistema legislativo tão em voga hoje em razão de sua especialidade, acaba também se subsumindo ao campo tradicional do Direito Administrativo e, particularmente, nesse último tópico antes mencionado – multas –, ao Direito Administrativo Sancionador.
Considerar as consequências das decisões judiciais e administrativas é, hoje, obrigatório no Direito Administrativo em razão da determinação dos artigos 20 e seguintes da LINDB, não por acaso denominada Lei da Segurança Jurídica.[1] Inclusive, muito já foi escrito sobre o tema pelos colegas administrativistas Carlos Ari Sundfeld, Juliana Palma, entre outros.[2] Portanto, temas relacionados à aplicação de multas pela ANPD às empresas envolvem, necessariamente, à ponderação das consequências decisórias.
No campo da ANPD, podemos pensar, por exemplo, na estrutura de incentivos comportamentais que o “regulador” (ANPD) quer estabelecer, ou seja, promoção de investimentos em prevenção, estruturação madura de Programa de Privacidade, bem como aspectos a isso relacionados, como transparência, análise de impacto em determinadas atividades de tratamento, atendimento a direitos dos titulares de maneira apropriada, entre outros.
O mesmo deveria valer para o Poder Judiciário quando está diante desse tipo de casos devendo inclusive prestar deferência à ANPD pela sua especialização na regulação e julgamento da matéria.
Nessa toada, é verdade que se poderia dizer que o campo da responsabilidade civil da empresa para com clientes e terceiros no mercado seria regulado pelo Código Civil ou mesmo pelo Código de Defesa do Consumidor. De modo que deveria o Poder Judiciário aplicar essas regras jurídicas de responsabilização civil de acordo com cânones dessas áreas do Direito Privado.
Todavia, como já chegamos a defender academicamente em outra oportunidade[3], os artigos da LINDB citados aplicam-se, analogicamente, ao Direito Privado, conforme conclusão em evento da Escola da Magistratura de São Paulo[4]. Assim, mesmo no campo da responsabilidade civil as consequências da aplicação de regras de Direito Civil ou do Consumidor devem ponderar seus efeitos. Foi também o caminho seguido pelo magistrado Fernando Clemente, em sua dissertação de mestrado sobre a LINDB.
Nessa esteira, as implicações da decisão judicial que julga casos de incidentes de segurança também devem considerar os impactos provocados aos agentes, sobretudo econômicos, mas também no campo da litigância, que pode ser aumentada por danos morais concedidos sem critérios e sem consideração sobre o quanto foi investido em prevenção, no enfrentamento ao evento adverso e na forma de lidar com o titular de dados. Também o poder judiciário deve enxergar a floresta e não apenas a árvore, refletindo sobre a estrutura de incentivos gerada no campo de Proteção de Dados anteriormente comentada.
A dogmática jurídica tradicional, ao enfocar o estudo do intérprete sobre a coerência lógico e sistemática dos princípios e regras jurídicas de acordo com textos constitucionais e infraconstitucionais, acaba por não incorporar as consequências da decisão judicial no raciocínio jurídico. Ocorre que essa visão dogmática acaba simplificando a complexidade do processo decisório, pois tudo acabaria sendo resumido à ponderação de princípios e regras sem levar em conta a repercussão do julgamento para a sociedade e para os administrados.
Mas no mundo real, é evidente que decisões judiciais ou administrativas produzem “efeitos de segunda ordem”, nos dizeres de Coase. Ou em outras palavras, há externalidades!
Com efeito, em artigo seminal traduzido e publicado no Brasil sobre o custo social, Coase intuíra e antecipara que o julgador acaba por conformar as expectativas das pessoas, gerando incentivos positivos ou negativos sobre o funcionamento da sociedade.
Dito de outra maneira, portanto, a concessão de decisões administrativas ou judiciais não antecipadas quando da formação dos preços pelo agente de mercado pode significar, imediata ou mediatamente, a completa inviabilização das operações do agente – e, mesmo que assim não seja, haverá consequências que não são necessariamente aquelas objetivadas pelo formulador de políticas públicas no famoso “efeito bumerangue” (em que as condenações ou indenizações se voltam contra os consumidores, que acabam pagando mais caro pelos produtos) além de correr o sério risco de emitir sinais equivocados ao mercado em relação à política de prevenção de incidentes de dados decorrentes especialmente de violação à segurança cibernética.
Especialmente quando se percebe uma estruturação de um mercado de litigância estratégica potencialmente predatória desses temas no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Diz-se isso porque o JEC não admite a produção probatória que essa matéria especializada e técnica requer e não normalmente enseja acesso aos tribunais superiores.
Nessa mesma linha, segundo Douglass North, instituições como o Judiciário ou o Direito criam incentivos diversos sobre a ação dos agentes em sociedade. Nesse sentido, o Direito pode ser visto como uma dessas instituições criadas pelos seres humanos, que, no modelo democrático de checks and balances, possui posição de proeminência em termos de influências exercidas sobre o comportamento humano em sociedade e, por consequência, também sobre as demais instituições – inclusive o Poder Judiciário.
Em seu já mencionado artigo de 1960, “The Problem of Social Cost”, Ronald Coase destacou adicionalmente que os juízes da common law reconheciam constantemente as implicações econômicas de suas decisões, de modo que, aliados a outros elementos de convicção, forneciam um aparato consistente para que chegassem a tais decisões[5].
Em recente trabalho acadêmico, Guilherme Caon concluiu que o STF vem fazendo o mesmo, como de fato já o fez o STJ em diversos de seus julgamentos recentemente, inclusive no espaço do Direito Privado. Resta agora os tribunais estaduais – especialmente dos JECS – de nosso país seguirem essa orientação hermenêutica.
[1] “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”
[2] SUNDFELD, Carlos Ari. “Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB”. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/direito-administrativo-o-novo-olhar-da-lindb-03052022; OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito Administrativo Pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020; JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB: acabou o romance : reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo [recurso eletrônico]. Belo Horizonte, v.277, n.esp., out. 2018; RÊGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia Jurídico-pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr.
[3] TIMM, Luciano. Consequencialismo no artigo 20 da LINDB: levando as consequências decisórias a sério. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro; ISSA, Rafael Hanze; SCHWIND, Rafael Wallbach (orgs.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada. São Paulo: Quartier Latin, v. II, 2019.
[4] Curso As decisões judiciais conforme as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, dias 20-22/08/2018. https://epm.tjsp.jus.br/Noticias/noticia/51569?pagina=1
[5] COASE, Ronald. The problem of Social Cost. In: The Journal of Law and Economics, Vol. III, 1960, p. 10.
LUCIANO BENETTI TIMM – Mestre e doutor em Direito pela UFRGS. LLM em Direito Econômico Internacional, Warwick. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade da Califórnia/Berkeley. Professor da FGV SP
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