Por que está faltando remédio básico nas farmácias e hospitais?
13 de julho de 2022Desde janeiro, mais de 14 mil pacientes relataram irregularidades nas entregas por todo o país, conforme dados do Movimento Medicamento no Tempo Certo
Por Lilian Caramel — Para o Valor, de São Paulo
No mês passado, a analista de logística Vanessa Garramoni passou uma manhã telefonando para farmácias da zona oeste de São Paulo, onde mora, em busca de amoxicilina quando dois sobrinhos foram diagnosticados com otite. Não encontrou o antibiótico para as crianças em nenhuma das grandes redes. Foi achá-lo em uma farmácia pequena de bairro, que vendeu-lhe as últimas caixas do estoque.
A auxiliar administrativa Patrícia Lima, de Fortaleza, passou os últimos oito meses telefonando constantemente para o Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará (Hemoce) em busca de hidroxiureia, medicamento que usa para o tratamento de uma leucemia crônica diagnosticada há oito anos.
Sem sucesso, ela tampouco encontrou-o em farmácias, e as poucas cartelas que tem em casa, conseguiu através de uma ONG. “O Hemoce informa que espera pelo andamento das licitações... Eles não têm previsão para entregar. Passei a tomar o que ainda resta dia sim, dia não, para não acabar logo”, conta.
O desabastecimento de medicamentos essenciais utilizados na atenção básica do Sistema Único de Saúde, o SUS, e do chamado “componente especializado” — mais caro, geralmente usado no tratamento de doenças raras e crônicas — generalizou-se neste ano, atingindo todas as regiões do país. Hoje, na rede pública, faltam soluções injetáveis como dipirona sódica, ocitocina (um auxiliar do parto), imunoglobulina humana (para imunodeficiências), aminoglicosídeos (antimicrobianos), neostigmina (para doenças musculares) e soro fisiológico.
Desde janeiro, conforme dados do Movimento Medicamento no Tempo Certo, articulação da sociedade civil pelo direito ao acesso aos medicamentos especializados sem atrasos, mais de 14 mil pacientes relataram irregularidades nas entregas por todo o país. São Paulo e Rio de Janeiro lideraram o ranking dos estados com o maior número de queixas.
O desabastecimento também afeta a rede privada e farmácias, que registra falta de antibióticos infantis, antialérgicos, broncodilatadores e analgésicos, entre outros. A crise preocupa entidades como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), que têm solicitado providências ao Ministério da Saúde.
“Antes da pandemia, aconteciam desabastecimentos pontuais, mas agora virou uma constante. Estamos girando em círculos tentando apagar incêndios, sem conseguir. É uma situação muito grave”, alerta Priscila Torres, conselheira Nacional de Saúde. “É um absurdo, enquanto país, não termos autossuficiência em soro, algo fundamental. Sabemos de casos de médicos usando morfina no pós-operatório porque falta dipirona, o que onera o SUS, além de quebrar o protocolo terapêutico recomendado”, critica.
Torres lembra, ainda, que a falta dos especializados, de compra e dispensação centralizada pelo ministério, já que são os mais caros, acontece há dois anos e impacta a vida dos pacientes de modo dramático. O Medicamento no Tempo Certo elenca, todo mês, os remédios dessa categoria com irregularidades no fornecimento. O micofelanato de sódio é um deles.
Sem acesso ao produto, crucial na fase pós-transplantes, alguns pacientes chegam a perder o transplante renal e precisam retornar à hemodiálise porque não conseguem comprá-lo. Em junho, 33 brasileiros de diferentes regiões reportaram que não conseguiram a medicação. Alguns correm risco de morrer enquanto esperam por um novo rim.
O Conasems, que representa 5.570 gestores municipais, confirma a falta generalizada. No último ofício encaminhado ao Ministério da Saúde, sem resposta até o momento, alerta que o desabastecimento representa um “sério risco à vida”. “Estamos preocupados porque não temos estoque para emergências.
Estamos racionando o uso. A nossa grita é para que o ministério faça a regulação junto ao mercado em caráter de urgência, inclusive a regulação efetiva dos preços. A governança junto à indústria para abastecer, regular estoques e ver o que dá para fazer nestas horas de crise é responsabilidade exclusiva do Ministério da Saude”, lembra Wilames Bezerra, presidente do conselho.
Bezerra conta que, mesmo com os preços aumentados, vários laboratórios estão desistindo de participar das licitações ou rompendo contratos. Ele não descarta a possibilidade de, em breve, faltarem outros insumos, como contraste para tomografias e raios-X.
“Não dá para dimensionar onde a situação poderá chegar. Será um caos”, adverte. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não colocou alguém para conceder entrevista, dizendo que as causas do problema são diversas, globais e extrapolam as competências da pasta.
A rede privada também sofre com a escassez. Embora informe que não há relatos de impacto no atendimento aos pacientes, a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) enfrenta dificuldades na compra de aminofilina (um broncodilatador), sulfametoxazol associado à trimetoprima (um quimioterápico), dipirona, soro e iodo. Além disso, os hospitais reclamam do aumento nos preços, que chega a 30% em alguns casos.
O Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp), que representa 51 mil estabelecimentos de saúde privada, ouviu 76 hospitais particulares do estado, entre abril e maio, sobre os problemas enfrentados pelo setor. Seguido pela alta nos preços, o desabastecimento apareceu como uma preocupação. Em 19 hospitais, itens como dipirona e neostigmina estão em falta ou seus estoques estão em níveis críticos.
A crise é sentida diariamente por farmacêuticos, que precisam lidar com o protesto dos consumidores. “Os pacientes reclamam porque a gente tem que pedir para eles voltarem ao médico para pedir receita de um similar... Infelizmente, ficamos nesse vai e vem com eles”, diz Leilane Rebouças, farmacêutica da rede Nissei, de Curitiba.
Na unidade em Colombo, na região metropolitana, Rebouças conta que não possui vários medicamentos, inclusive genéricos, similares de referência, analgésicos infantis, antibióticos e xaropes para crianças e adultos. “Medicamentos caros, usados por diabéticos, também não têm vindo na quantidade que a gente precisa.
Há seis meses que falta Nesina Met [para diabetes tipo 2]. Quando veio, veio pingado. Até o genérico da Novalgina nunca mais veio. A situação está complicada”, lamenta. A baixa produção nacional de insumos farmacêuticos ativos, os IFAs, sobretudo aqueles necessários à manufatura de remédios básicos, é apontada por especialistas como uma das causas centrais do desabastecimento.
Atualmente, 95% dos insumos são importados da China, Índia, Europa e Estados Unidos. Disrupções nas cadeias globais de suprimento resultam no fenômeno. “O Brasil possui uma rede consolidada de laboratórios oficiais, que produzem medicamentos.
Mas eles não conseguem fazer frente à nossa dependência do exterior. Estamos muito atrasados em IFA”, conta Claudia Osorio de Castro, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. “É urgente agir neste sentido.
Aliás, há muito tempo, o Estado deveria estar cumprindo seu dever de não deixar faltar os medicamentos dos componentes básico e estratégico, com iniciativas pontuais junto à indústria para fornecimento dos especializados também, na medida das necessidades cruciais da população.
Tem que ter medicamento na prateleira”, frisa. A pesquisadora lembra que o desabastecimento é um fenômeno que vem acontecendo na última década, quando o país abraçou a inovação em detrimento das prioridades sanitárias.
“É claro que inovação e tecnologia são importantes, mas o Estado vai precisar rever suas escolhas. Alguns ovos terão que ser quebrados em nome de um pacto pela saúde pública que resolva este desabastecimento colossal”, defende.
O vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), Peter Andersen, é voz ativa no setor produtivo e advoga por políticas públicas para desenvolvimento de um parque nacional competitivo estratégico que atenda às demandas essenciais do país.
O executivo vê o quadro atual como muito grave. “Na década de 1980, chegamos a produzir 50% dos IFAs. Hoje, só produzimos 5%. Se a situação geopolítica se deteriorar na Ásia por conta da guerra, vamos acabar mendigando IFA, de pires na mão, aos Estados Unidos”, teme Andersen, que conta que a Abiquifi está tentando sensibilizar o Executivo para a questão e está dialogando com o Ministério da Saúde, o Ministério da Ciência e Tecnologia, Finep, Senai e Embrapii em busca de soluções em parceria.
A descontinuidade na produção de medicamentos de baixo custo pela indústria para investimento em produtos novos — e de maior valor — é apontada como outra causa do problema.
Anestésicos injetáveis e antibióticos, que estão entre os mais escassos na praça, são exemplos de produtos baratos que os laboratórios perdem o interesse em produzir por razões comerciais. A multinacional suíça Roche, por exemplo, encerrou a produção de dez itens entre 2018 e 2021. Entre eles, estavam cinco marcas populares para insônia, ansiedade e síndrome do pânico.
Em nota, a companhia informa que sua estratégia global é concentrar os esforços em produtos inovadores, de alta complexidade e baixo volume de produção. Já o laboratório goiano Teuto, que produzia 50% da dipirona injetável no país, suspendeu a fabricação em maio, alegando que o alto custo do IFA inviabilizou as operações. A produção foi paralisada por tempo indeterminado.
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