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Reforma vai mostrar como carga é alta, diz Lisboa

29 de março de 2023
Fonte: Jornal Valor Econômico – SP

Para economista, ‘vantagem de ter um IVA é você tornar um debate democrático e transparente’

Por Alex Ribeiro — De São Paulo

O economista Marcos Lisboa, afirma que a proposta de reforma tributária é neutra do ponto de vista da carga tributária, mas deverá explicitar o alto volume de impostos pago pelos contribuintes.

“Você pode não gostar da notícia”, afirma Lisboa. “Mas o problema já é antigo.” Um dos arquitetos da agenda de reformas microeconômicas do primeiro governo Lula, Lisboa diz que a adoção de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) na reforma tributária deverá tornar-se mais transparentes aumentos de impostos para ampliar gastos ou equilibrar as contas públicas.

Tem uma tradição no Estado brasileiro de usar a criatividade para arrecadar mais” Hoje, segundo ele, o governo usa atalhos, como mudar a regulamentação e a interpretação administrativa sobre a incidência de impostos.

“A vantagem de ter um IVA é você tornar um debate democrático e transparente”, diz Lisboa, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Quer aumentar a arrecadação? Passa a alíquota de 25% para 28%.”

Lisboa diz, em entrevista ao Valor, que boa parte das críticas ao IVA vem do desconhecimento das propostas e da experiência internacional, além do receio de alguns segmentos de perderem benefícios.

“O que não se percebe é que a soma desses milhares de benefícios é um sistema disfuncional em que você paga muito imposto, de outras formas.”

Se em vez de desonerar a cesta básica eu cobro tributo e repasso dinheiro ao Bolsa Família, a desigualdade cai 12 vezes ”

O receio de eventuais altas de alguns preços com maior visibilidade, como alimentos, num ambiente de inflação ainda muito alta, não deveria impedir a aprovação da reforma tributária. “Se deixarmos a política de longo prazo ser comprometida pela conjuntura, não vamos sair do lugar”, afirma Lisboa. “Vamos continuar sendo um país de baixo crescimento.”

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Valor: O governo está colocando a reforma tributária como a grande alavanca do crescimento. Não seria um exagero?

Marcos Lisboa: Essa é uma das reformas essenciais para o Brasil ter crescimento mais normal em comparação com o mundo.

O Brasil é um país que empobrece há 40 anos. Desde o Plano Real até o comecinho da crise na década passada, os países emergentes fora da América Latina - Vietnã, Malásia, Tailândia, Índia, China, Leste Europeu - cresceram 127% no seu PIB per capita.

Os Estados Unidos cresceram 48%, a OCDE cresceu em torno de 35%. O Brasil cresceu 18%. Crescemos muito menos que os países emergentes e até que os desenvolvidos. O Brasil tem problemas graves que estão levando nossa economia a ficar para trás em relação ao resto do mundo. E o tributário é um deles.

É uma reforma de longo prazo. Claro que tem impacto, se aprovada, porque melhora a expectativa sobre a economia, mas tem impacto no longo prazo.

Valor: E por que a reforma tributária é tão importante para o crescimento da economia?

Lisboa: Os contenciosos tributários no Brasil chegam a 75% do PIB, somando o administrativo e judicial. Só o administrativo representa 15% do PIB. Os dados mais recentes para os países da OCDE são de 0,28% do PIB.

O Brasil é um caso à parte do mundo, mesmo na comparação com a América Latina. É disfuncional. Tem um custo muito óbvio, que eu não acho o principal, de um batalhão de advogados tributaristas e de estruturas para entender como paga, quanto não paga, as provisões no balanço das empresas. E tem uma segunda parte, mais sutil, que é mais importante, que é o que levou grande parte do mundo para o IVA.

Por que adotaram o IVA? Olhando o imposto de consumo, o que seria ruim para o país é se induzisse as empresas, simplesmente para pagar menos impostos, a escolherem tecnologias piores, modos de organização da produção ou portfólio de produtos mais ineficientes, que contribuem menos para o crescimento.

O que você não quer é que a tributação sobre consumo distorça o que é socialmente ótimo as empresas fazerem. E isso acontece no Brasil. As empresas fazem essas contas. O aspecto tributário é tema de qualquer conselho relevante na empresa.

É importante também porque os preços dos bens e serviços são muito distorcidos. Alguns insumos ficam muito mais caros do que deveriam ser, outros ficam muito mais baratos, algumas máquinas ficam muito mais caras.

Valor: Como a reforma tributária ajuda a resolver esse problema?

Lisboa: O IVA é um imposto muito simples, que não gera contencioso, concebido 50 anos atrás exatamente para não fazer isso. É um imposto essencialmente sobre o consumo final, que você vai arrecadando um pedacinho desse imposto a cada etapa do processo de produção.

Muito fácil. Pega a nota fiscal de tudo que você vendeu, menos a nota fiscal de tudo que você comprou, e paga uma alíquota única. Você pode mostrar que, cobrando desta maneira, é a uma alíquota sob consumo igual para qualquer decisão de consumo. Você não gera essas distorções que eu mencionei. Ele é um imposto no destino, jamais da origem. Não tem muita disputa.

Valor: Esse volume de contenciosos não seria uma coisa cultural brasileira? Vai ser uma lei nova que vai resolver tudo?

Lisboa: Acho que é problema da lei. O Brasil teve uma concepção do sistema tributário que leva a esse contencioso. É muito difícil saber qual imposto pagar, inclusive.

No Brasil, tem o chamado crédito produtivo, que é uma invenção à brasileira. Você pode deduzir tudo o que entrou diretamente na produção. Mas o que entrou diretamente na produção? Aí começa a controvérsia.

O marketing é parte do negócio ou não? Vai gerando um contencioso gigantesco. Um segundo aspecto: você tributa por tipo de produto, o que não é o normal do resto do mundo. O imposto de consumo é o imposto sobre a decisão de consumir. No Brasil, você faz sobre o tipo de produto. Definir um tipo de produto é muito mais complicado do que parece.

O banquinho é um banquinho ou uma mesa de cabeceira? A barra de cereal com chocolate é barra de cereal ou é chocolate? Com essa complexidade, gera essas imensas disputas contenciosas.

A jurisprudência no Brasil é muito fluida. O tribunal administrativo [o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Carf], ainda mais com o voto de qualidade da Receita, vai mudando a interpretação da norma. O IVA é um imposto exatamente desenhado para não ter os problemas que temos hoje.

Valor: O Brasil discute a reforma tributária há décadas. Há agora um ambiente político diferente para aprová-la?

Lisboa: Primeiro, tem muito desconhecimento. Não temos o hábito de discutir política pública fazendo comparações com as melhores práticas dos demais países e com base nos estudos com microdados. Tem muito desconhecimento sobre o que é o IVA. Existem muitos trabalhos aplicados sobre IVA, são 50 anos de discussão, de melhorias, de aperfeiçoamentos nos demais países.

No começo da implantação do IVA, alguns países adotaram algumas exceções. Agora, cada vez menos tem exceções no IVA. Alguns países não têm exceção, é alíquota única para todo mundo. Há alguns casos um pouco mais difíceis, como construção civil. Mas o que eu vejo é que existe muito desconhecimento, inclusive no setor privado, sobre o que é um IVA. E aí tem um uma reação muito grande.

Valor: O que motiva essas reações?

Lisboa: Uma característica do Brasil, da nossa disfuncionalidade, é que o Estado concede uma multiplicidade de pequenos benefícios em diversas áreas. Você paga um pouco menos de IPI, você não paga PIS/Cofins. Cada um tem uma alíquota diferente, uma regrinha especial, que adiciona a essa complexidade, a essas brigas todas.

Na hora que você vai fazer uma reforma como essa, que vai criar um padrão único igual para todo mundo, republicano, que é mais eficiente, cada grupo levanta e fala: “Veja bem, e o meu benefício?”. O que não se percebe é que a soma desses milhares de benefícios é um sistema disfuncional em que você paga muito imposto, de outras formas.

Muitas vezes o imposto está escondido no preço do que você compra. Você fica num dilema dos prisioneiros, em que todo mundo prefere perder.

Valor: Como a proposta de reforma vai resolver esse impasse?

Lisboa: A reforma imaginada pelo Bernard [Appy] e pela Vanessa [Canado] é muito inteligente. Para ajudar a reduzir esse receio, é progressiva, tem um período de experiência. Você vai ajustando, ano após ano. Exatamente para tirar esse receio do que vem de quem prefere não mudar.

Valor: Essa reforma está madura para ser aprovada? No caso da Previdência, a reforma só foi aprovada quando havia um maior consenso entre quem perdeu direitos.

Lisboa: Acho que a Previdência demorou tempo demais. O Brasil pagou um preço alto ao demorar tanto para fazer uma reforma que o resto do mundo fez no fim dos anos 1990, começo dos anos 2000. Não será sem custo ter demorado tanto.

Sobre a reforma tributária, vejo que a avaliação do setor privado avançou, mas ainda tem essa combinação de desconhecimento e receio. E tem as propostas dessa nossa criatividade destruidora típica no Brasil, como algum imposto sobre movimentação financeira. Ou dizer que serviço não pode pagar com os outros. Vem do desconhecimento.

Valor: Mas não vai ter uma mais taxação sobre os serviços?

Lisboa: Os serviços para a indústria, com a reforma, vão passar a gerar crédito. Os serviços vão custar muito menos para a indústria. O que vai pagar mas são os serviços para o consumo.

Segundo, afirma-se que as cidades vão perder. A imensa maioria das cidades vai se beneficiar. Algumas poucas cidades, grandes e mais ricas, sim. A maioria dos Estados pobres vai se beneficiar. Dizem que os pobres vão pagar mais, não é verdade, as estimativas não indicam isso.

Não indicam que essa reforma é regressiva. Ela vai explicitar o tributo alto que já se paga no consumo, que é disfarçado. No Brasil, tem um pecado original, que é a maneira como o sistema foi desenhado lá atrás e abre espaço para essas disfuncionalidades. Tem a captura por pequenos grupos de interesse, mas também tem a maneira como o Estado brasileiro aumenta a arrecadação.

Não é uma maneira clara. Em geral, vai aumentando por meio de atalhos. Cria uma nova interpretação. Diz, veja bem, o fundo de pensão tem que pagar, sim.

E você não sabia que tinha que pagar de outra maneira o que estava pagando. Vai criando impostos regulatórios que, na prática, são arrecadatórios, como o IOF.

Tem uma tradição no Estado brasileiro de usar a criatividade para arrecadar mais. Isso compõe também o quadro dessa complexidade do sistema tributário brasileiro. E do contencioso que as firmas carregam em seus balanços que você não vê em outros países.

Valor: O governo está contando com a arrecadação para melhorar o resultado fiscal. Esse ambiente é adequado para uma reforma tributária?

Lisboa: Essa reforma da PEC 45 quer manter a carga tributária no nível que está hoje. Ela vai explicitar o que a gente já paga, e você pode não gostar da notícia. Mas o problema já é antigo. A ideia é não ter aumento, e há uma série de mecanismos para evitar que tenha aumento.

Essa maneira tradicional que foi feito o aumento da arrecadação no Brasil, sem um olhar os princípios básicos do regime tributário, criando interpretações mudando a jurisprudência, é muito disfuncional para o país. Você pega o histórico de decisões do Carf, como eles vão mudando ao longo do tempo.

Coisas que eram pacíficas deixam de ser. Contribui para esse quadro caótico do sistema tributário nosso. A vantagem de ter um IVA é você torna um debate democrático e transparente. Quer aumentar a arrecadação? Passa a alíquota de 25% para 28%.

Valor: Como ficam as isenções que são voltadas para proteger os mais pobres, como no caso dos preços dos alimentos?

Lisboa: É muito mais eficaz fazer política pública via gasto público do que por meio de regras de tributação sobre consumo. Desonerar a cesta básica é meio caótico. O que é a cesta básica? Peixe entra? Entra. E salmão? Salmão é peixe, mesmo que seja um salmão sofisticado.

É a velha questão de tentar definir por produto. E a desoneração vai para o rico e para o pobre. O Ministério da Fazenda fez um trabalho em que fez o contrafactual: o que acontece se, em vez de desonerar a cesta básica, eu cobro tributos da cesta básica e transfiro o dinheiro que arrecado para o Bolsa Família. A desigualdade cai 12 vezes mais. Você consegue focalizar muito melhor os recursos.

É como o Bolsa Família, é muito melhor, você transfere direto o dinheiro para as famílias mais pobres e elas decidem como alocar.

Valor: Hoje os bancos centrais no Brasil e no mundo estão lutando contra uma inflação muito alta. Mexer com a tributação de serviços, alimentos não cria mais um constrangimento num período já complicado?

Lisboa: Se deixarmos a política de longo prazo ser comprometida pela conjuntura, não vamos sair do lugar.

Vamos continuar sendo um país de baixo crescimento. Lembro que, quando fazíamos as reformas do crédito, em 2003, com consignado, mudança na alienação fiduciária de automóveis, patrimônio de afetação, lei de falências, tinha esse debate.

Diziam que estávamos numa fase de aumentar juros, no Banco Central, e essa agenda de reformas reduzia os juros. Mas a gente dizia que essa redução é um ganho de eficiência para a economia.

O banco não perdeu, o cliente ganhou porque está pagando juros mais baratos, o crédito cresceu. Esse é um ganho permanente para o país. O país está melhor. Outra coisa é a gestão da política monetária de curto prazo para controlar a inflação. Você vai calibrar a política monetária adequadamente.

Valor: Um dos argumentos do setor de serviços é que são intensivos de mão de obra, e a taxação no trabalho já é muito alta. Faz sentido esse argumento?

Lisboa: Uma coisa é a tributação sobre o consumo. Se for uniforme, é melhor para o país. Uma outra discussão, que é diferente dessa, é que o Brasil tem alíquotas altas sobre o trabalhador formal com carteira assinada.

Será que é o caso de mudar isso? Tem propostas muito antigas, de 20 anos atrás, como tirar a contribuição do INSS sobre o primeiro salário mínimo de todo mundo. Óbvio que quem tem um salário muito alto vai pagar mais. Vai induzir formalização.

Valor: O presidente Lula tem falado em colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda. Esse seria o caminho?

Lisboa: O problema é que, na hora de implementar isso, as pessoas repetem vários erros e velhos preconceitos. Entrando no Imposto de Renda, o ideal é combinar os princípios. Famílias parecidas com o mesma renda deveriam pagar o mesmo imposto. Famílias mais ricas deveriam pagar mais imposto. O problema no Brasil é que a gente gosta do atalho.

Em vez de analisar a renda das pessoas individualmente e tributar conforme a sua renda, inventamos esse mecanismo muito forte, numa escala muito maior, de tributar por tipo de empresa. Assumimos, meio implicitamente, que a empresa grande tem acionista grande, e empresa pequena tem acionista pequeno.

O que não é verdade. Por exemplo, fundos de pensão, que pagam as aposentadorias, com frequência estão investindo em empresas de capital aberto. É uma classe média que recebe aquela renda. O ideal seria você, primeiro, reduzir a tributação do lucro real na pessoa jurídica.

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