STF reafirma a competência normativa das agências reguladoras
06 de abril de 2023Decisões são de máxima importância, sobretudo quando atores políticos rediscutem o grau de autonomia das agências
A estruturação dos marcos da regulação setorial observa parâmetros legais, complementados pelas “normas” das agências reguladoras. Trata-se de arranjo considerado constitucional e apto a viabilizar as atividades tuteladas por regras específicas. Para o STF, a autonomia normativa das agências reguladoras existe, por exemplo, para definir estratégias de coordenação dos setores regulados bem como para selecionar, desde que de modo isonômico e nos limites legalmente estabelecidos, os instrumentos para a exploração dos serviços públicos.
A posição do Supremo está manifestada nos acórdãos proferidos no âmbito das ADIS 5.906/DF, 5.549/DF e 6.270/DF. No caso, questionavam-se dispositivos da Lei 10.233/2001 e atos infralegais que regulamentam a prestação do transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros (TRIIP) pela ANTT.
Na ADI 5.906/DF, alegou-se violação aos princípios constitucionais da legalidade e da separação de poderes, com vistas a declarar a inconstitucionalidade dos artigos 24, inciso XVIII, e 78-A, caput e incisos I a VI, da Lei 10.233/2001 e, por arrastamento, da Resolução ANTT 233/2003.
Os dispositivos questionados transferem à ANTT a possibilidade de especificar tipos infracionais, sanções e medidas administrativas que se façam necessárias à garantia do cumprimento dos deveres estabelecidos em contratos de concessão, termos de permissão e autorização.
A racionalidade dessa “complementação normativa” é que certas matérias exigem a verticalização do conhecimento e a centralidade decisória nas agências reguladoras. A conformidade institucional e expertise permitem respostas mais céleres, oportunas e precisas para problemas setoriais.
É fato que a ADI 5.906 não atacou, especificamente, certos dispositivos legais ou contidos na Resolução 233/2003. O STF, contudo, reconheceu que a resolução obedece às diretrizes legais na medida em que protege os interesses dos usuários e preza pela qualidade e oferta de serviços que atendam a padrões de eficiência, segurança, regularidade, conforto e modicidade das tarifas.
Conforme consignado no voto do ministro Gilmar Mendes, caso se identifique a violação do devido processo legal, situação de abuso ou desvio de poder por parte das entidades reguladoras, é legítimo que se recorra ao Poder Judiciário para verificar a adequação das medidas administrativas adotadas. Trata-se de competência normativa autorizada, condicionada a procedimentos e pertinência, aferível em controle jurisdicional.
A ressalva é importante porque dentre as disposições da Resolução 233/2003, por exemplo, constam proibições cujo potencial de abuso de poder regulatório tem sido questionado em diversas instâncias do Judiciário. A vedação de venda ou emissão de bilhetes individuais para usuários não relacionados na lista de passageiros quando da prestação dos serviços de TRIIP sob o regime de fretamento – imposição complementar à regra do circuito fechado (vide art. 1º, IV, alíneas “c” e “d”) – não é ponto pacífico entre regulador e regulado.
Nas ADIS 5.549 e 6.270, em outra linha, sob relatoria do ministro Luiz Fux, foram declarados constitucionais os arts. 13, inciso V, “e”, 14, III, “j” da Lei 10.233/2001. Os dispositivos definem a autorização como o instrumento adequado para a exploração dos serviços de TRIIP, na forma do art. 21, inc. XII, “e” e 178, da Constituição.
A lógica interpretativa do STF tem a seguinte base. Se alguns setores congregam a um só tempo obrigações de serviço público e exploração de atividade econômica, e.g., os serviços de saúde, telecomunicações, energia elétrica e transportes (aquático, aéreo e terrestre), o STF entende ser possível mesclar institutos jurídicos menos complexos, como a autorização, e institutos com mais exigências, tal qual a concessão.
Por seu caráter excludente, a licitação deve aplicar-se somente às hipóteses em que o processo seletivo formal se comprovar necessário ao atingimento das finalidades precípuas dos princípios da isonomia, da redução das decisões irracionais e da obtenção da proposta mais vantajosa.
Este é o típico exemplo dos setores em que se exploram monopólios naturais, cujos agentes se engajam na disputa de atuação exclusiva nos mercados. Nestes casos, a concorrência operacional pode implicar alocação ineficiente de recursos e inviabilizar a prestação do serviço público.
Em situações diversas, quando a concorrência operacional é desejável e possível, o procedimento licitatório impõe barreiras à entrada, injustificadas. Privilegia-se a burocratização, cria-se incentivo à clandestinidade na prestação dos serviços, má administração da coisa pública e violação aos princípios da moralidade e da livre concorrência.
Com efeito, desde que assegurada formalidade pré-definida, o legislador pode optar, dentro de um mesmo setor regulado, no caso o sistema de transportes coletivos, por conferir instrumentos de acesso diferentes às atividades exploradas, conforme características do mercado e do usuário (art. 37, XXI da CF).
Um bom exemplo da diversidade normativa para exploração de setores se dá em transportes terrestres de rodovia. A Lei 10.233/2001 estipula que o instrumento adequado para a exploração dos serviços de infraestrutura é a concessão. Para o transporte regular interestadual semiurbano, elege o instrumento da permissão. Já para os serviços de TRIIP, em que a estrutura de mercado demanda maior concorrência, a autorização.
No caso da aviação civil, a Lei 11.182/2005, que ciou a Anac, estipulou no art. 8º, XIV, competências para outorgar, conforme regulamento próprio, a exploração dos serviços aéreos. E, se antes o art. 122 da Lei 8.666/1996 previa a necessidade de procedimento licitatório para a concessão de linhas aéreas, o atual marco normativo prevê a liberdade tarifária para o setor.
Sem prever qualquer modalidade de licitação, admite-se o ingresso das empresas que preenchem os requisitos estabelecidos pela Anac (arts. 48, §1º e 49, caput). A Anac exerce a “complementação normativa”, discriminando quais seriam as exigências para que múltiplos agentes econômicos possam prestar os seus serviços ao consumidor nacional.
As decisões da Suprema Corte são de máxima importância, notadamente quando os atores políticos rediscutem a existência e grau de autonomia das agências reguladoras. O STF consolida a tese de que há margem de complementação normativa para as agências, conquanto deva observar procedimentos e pertinência justificável. Assim sendo, os setores regulados podem estar mais adaptados às necessidades de empresas e usuários, sempre observando as premissas lançadas na legislação.
GILVANDRO ARAÚJO – Professor do IDP, coordenador do grupo de estudos Jurisdição e Competitividade na Regulação da Infraestrutura
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