‘Vacina é um pacto coletivo’
08 de dezembro de 2025Especialista destaca as estratégias usadas por ‘charlatães’ nas redes sociais e sugere comunicação profissional mais acolhedora
ISABELA MOYA
No começo da pandemia de covid-19, a Unesco – braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para educação, ciência e cultura – criou o termo “desinfodemia” para se referir a toda e qualquer informação falsa criada com o intuito de enganar as pessoas, sobretudo nas redes sociais. Mas foi nessa época também que muitos pesquisadores e profissionais da saúde ganharam protagonismo ao fazer o oposto: espalhar conhecimento pautado em ciência.
“A internet é o principal mecanismo de distribuição tanto da desinformação quanto da informação”, aponta o documento da Unesco. De lá para cá, pouca coisa mudou. Enquanto profissionais “charlatães” tentam vender cursos, produtos e tratamentos sem base científica, há comunicadores ainda empenhados em explicar a ciência. Entre eles está a bióloga Mari Krüger, influenciadora digital com mais de 2,6 milhões de seguidores no Instagram, que recorre ao humor para desmontar mitos de “soluções milagrosas”.
Como é o processo por trás da criação dos seus vídeos? No que você se baseia para construir um conteúdo?
Acordo com todas as atrocidades, fake news e absurdos na minha DM ( direct message) todo dia. Sou sempre surpreendida negativamente por algum tratamento milagroso ou por algum profissional que está repassando alguma desinformação. Então, acabo fazendo um filtro dentro disso – o que mais chegou, quais foram as dúvidas que vieram mais vezes e também uma classificação de quão grave é. Para a produção, geralmente faço uma pesquisa, inicialmente entre os divulgadores científicos e profissionais daquelas áreas para ver se eles já falaram sobre isso. Como esses conteúdos normalmente são referenciados, uso esses artigos. E tenho minha rede segura de profissionais com os quais já trabalhei. Peço indicação de artigos que usaram uma boa metodologia científica e tiveram um bom desenho de estudo.
Sabendo que mesmo profissionais da área compartilham d e s i n f o r mação, quais filtros você usa para saber que um profissional é confiável?
Seguir as instituições médicas sérias e reconhecidas já nos ajuda muito, como da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou das sociedades médicas, órgãos oficiais, o Ministério da Saúde, porque essas instituições falam a partir do consenso científico. E aí ficamos mais treinados para desconfiar. Por exemplo, quando identifico um conteúdo de uma pessoa que não está recomendando a vacina da covid, que é consenso científico em segurança, levanta essa bandeira vermelha de que essa pessoa provavelmente não está embasando a sua fala no consenso científico.
Perfis que não têm um RQE (Registro de Qualificação de Especialista) já são um sinal de alerta, porque é um médico que não tem especialidade reconhecida, mas fala como um especialista. Também são sinais de alerta essas vendas de protocolos próprios porque, dentro da ciência, não existe um protocolo próprio e exclusivo que só aquele médico tem. Quando um protocolo é reconhecido cientificamente, ele é divulgado por meio de artigos científicos, dessas sociedades médicas.
(Podemos desconfiar também das) recomendações muito generalizadas, como “todo o mundo deveria estar tomando esse suplemento”, “todo o mundo deveria fazer esse protocolo”. Tudo tem de ser muito individualizado, então, quando estão tentando vender algum produto que precisa ser usado por todo o mundo, provavelmente é muito mais sobre o que aquela pessoa vai ganhar com isso.
Como tornar esses conteúdos científicos ‘palatáveis’ para o seu público?
Na hora em que escrevo o roteiro, tem essa parte mais científica e tem a parte criativa. Faço o exercício de ler essa parte técnica e pensar de que forma traduzir isso para a linguagem mais fácil possível. Meu marido trabalha comigo nessa parte, ele é uma pessoa supercriativa, então me ajuda a trazer algum exemplo para que o assunto fique o mais simplificado possível. Aí a gente cria os personagens, o roteiro e vai para a produção, que é fazer as fantasias, o cenário, criar esse personagem, e aí a gente capta, edita e esse vídeo nasce.
Por que tantas pessoas, mesmo com bom nível educacional, ainda caem em informações falsas?
A desinformação tem um potencial viral muito grande porque geralmente traz um atalho, uma solução rápida e uma indicação de um produto. E a gente tem essa geração que está muito ansiosa e quer algo rápido, o link do TikTok Shop para comprar a solução dos seus problemas. Do outro lado, a gente tem a galera que fala de ciência trazendo um conteúdo “chato”, porque não é tão atraente, não vai te trazer uma solução rápida, uma gominha saborosa que vai resolver a sua queda de cabelo. Uma coisa que também vejo acontecer dentro da ciência é que todo o mundo está no limite do estresse vendo a desinformação, então, às vezes, nos deixamos levar por essa emoção e acaba saindo um conteúdo de raiva. Mas também acredito muito numa comunicação mais calma, mais tranquila, e principalmente que acolha.
Muitos jovens passaram a dizer que não querem cursar faculdade e querem ser influenciadores. Como você vê o futuro do mercado de influência?
Torço para que cada vez mais pessoas estejam fazendo faculdade e colocando conhecimento nas redes sociais. Não acho que esse é o único caminho, mas foi o caminho que fiz e acho que funcionou muito. Tem acontecido muito de universidades me chamarem para palestrar para esses alunos, para dizer que vale a pena estudar, que o conhecimento nunca vai ser um peso. Mesmo que a gente não vá usar esse conhecimento diretamente dentro da nossa vida de forma profissional. E, falando em influência digital, acredito muito que a gente vai ter agora um crescimento exponencial de influenciadores especialistas. A inteligência artificial agora está bombando, então vai ter a desinformação cada vez mais potente, mas também acho que vai existir essa supervalorização do que é real, feito por humanos com conhecimento.
Suplementos costumam ser ineficazes?
Esses produtos encontram brechas na legislação para serem vendidos porque, no Brasil, a Anvisa ( Agência Nacional de Vi
gilância Sanitária) regulamenta suplementos como alimentos, então eles precisam comprovar apenas a sua segurança, e não a sua eficácia. Mas é justamente por eles serem seguros para todos que a gente consegue perceber também que têm uma dosagem muito pequena de todos os nutrientes que estão ali dentro. E justamente por essa dosagem ser tão baixa acabam não entregando praticamente nada das alegações. Não são capazes de corrigir deficiências, não vão substituir alimentação saudável e vão acabar virando “xixi caro”.
Quais as tendências disseminadas na rede que você considera mais perigosas para a saúde das pessoas?
Não tem como não falar do movimento antivacina, de doenças que estavam já controladas e que voltaram a existir porque os pais não estão vacinando crianças. E não só a vacina de covid-19, mas vacina de forma geral. Esse movimento antivacina, de “detox de vacina”, toda essa tendência que prejudica não só quem decide não tomar vacina ou fazer esse detox, mas as pessoas ao seu redor também. Vacina é um pacto coletivo: quando decido não vacinar o meu filho, não é só ele e a minha família que serão prejudicados, mas toda criança que convive com ele, toda a comunidade escolar.
De alguma forma muito maluca, parece que falar de vacina é quase se posicionar politicamente. Mas falar de vacina não é partidário, é falar sobre saúde pública. A gente precisava ter mais pessoas falando sobre isso, e não só da área da ciência. Eu diria também que práticas como soroterapia, que não é só um “xixi caro”, é uma prática invasiva que pode trazer uma infecção. Tem os enemas de café, as lavagens intestinais, coisas que não só não têm comprovação, como podem trazer riscos à saúde.
Divulgadora científica formada em Ciências Biológicas pela UFRGS e influenciadora digital com 2,6 milhões de seguidores.
“A desinformação tem um potencial viral muito grande porque geralmente traz um atalho, uma solução rápida e uma indicação de um produto”
“Falar de vacina não é partidário, é falar sobre saúde pública”
Você é jornalista? Participe da nossa Sala de Imprensa.
Cadastre-se e receba em primeira mão: informações e conteúdos exclusivos, pesquisas sobre a saúde no Brasil, a atuação das farmácias e as principais novidades do setor, além de dados e imagens para auxiliar na produção de notícias.
Vamos manter os seus dados só enquanto assim o pretender. Ficarão sempre em segurança e a qualquer momento, pode deixar de receber as nossas mensagens ou editar os seus dados.